Lisboa > Casa do Alentejo > 26 de Maio de 2007 > Fernando Calado (1945-2025) e Rosa Calado: um grande amor para a vida.
Foto (e legenda): © Luís Graça (2007). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Lisboa > Casa do Alentejo > 26 de outubro de 2013 > Ismael Augusto (em segundo plano) e Fernando Calado: dois amigos para a vida. Partilharam o mesmo quarto em Bambadinca (1968/70).
Foto (e legenda): © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]-
Foto (e legenda): © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]-
Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Bambadinca > Comando e CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Dezembro de 1969 > A equipa de futebol de oficiais de Bambadinca que acabara de jogar contra uma equipa de sargentos.
Na fotografia aparecem, na segunda fila, da esquerda para a direita: de pé, o alf mil Beja Santos (cmdt do Pel Caç Nat 52, 1968/70), o alf mil médico, David Payne Pereira (já falecido em data anterior a 2006; era um conhecido psiquiatra), o major Cunha Ribeiro (1926,-2023), comandante do BCAÇ 2852, o cap inf Carlos Alberto Machado de Brito (hoje cor ref, vive em Braga), comandante da CCAÇ 12, e ainda o alf mil at int Abel Maria Rodrigues, também da CCAÇ 12.
Na primeira fila, da esquerda para a direita, um militar que ainda está por identificar, seguido de três alf mil, José António G. Rodrigues, da CCAÇ 12 (já falecido), o António Carlão, também da CCAÇ 12 (já falecido) e o Ismael Augusto (CCS). O Fernando Calado, alf mil trms, também fazia parte desta equipa mas fracturou um braço, não aparecendo por isso na foto de grupo (que é do álbum do cor inf Cunha Ribeiro).
Foto: © João Pedro Cunha Ribeiro (2023). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Dormir nu à noite era normal, podendo todavia originar algumas situações pícaras como a que aqui é descrita (**)... No quartel de Bambadinca, que até tinha razoáveis instalações para oficiais sargentos, os oficiais milicianos dormiam em quartos com três camas. Quartos individuais eram um privilégio de capitães e oficiais superiores.
Inserir este aerograma na série "Humor de caserna" é também uma forma de homenagear um camarada e amigo como o Fernando Calado de quem o Hernani Figueiredo disse recentemente (em mensagem de domingo, 29/06/2025, 17:26):
(...) "Encontrámo-nos no BC 5, em Campolide, antes da mobilização de ambos para a Guiné, ele no BCAÇ 2852 e eu no BCAÇ 2851.
1. A propósito da canícula destes dias de finais de junho (em que no passado domingo, ao início da tarde, se atingiu, em Mora, um novo e preocupante recorde de temperatura para este mês, no nosso país, 46,6° C, valor próximo do máximo histórico absoluto registado em 2003, na Amareleja, 47,3º C), fui recuperar um aerograma do nosso saudoso Fernando Calado (Ferreira do Alentejo, 1945 - Lisboa, 2025), escrita para a sua namorada de então (e futura esposa e mãe dos seus dois filhos, a Rosa Calado). O aerograma é datada de Bambadinca, 1 de dezembro de 1969.
O documento, já publicado em tempos no nosso blogue (*), merece ser recuperado e reproduzido. Por diversos motivos:
(i) é uma belíssima carta de amor;
(ii) tem apontamentos sobre o nosso quotidiano na Guiné;
(iii) confirma o que todos nós experimentámos: o território tinha então (e continua a ter) um clima tropical húmido, caracterizado por temperaturas elevadas durante todo o ano e uma humidade relativa do ar extremamente alta, suscetível de causar desidratação e esgotamento, dificuldades respiratórias, problemas de pele, problemas de sono, doenças tropicais, stress físico e psicológico, etc., problemas agravados pela guerra e a atividade operacional, o isolamento, a saudade, a par do elevado consumo de álcool, procura de sexo e outros comportamentos aditivos como o jogo.
Tomando hoje Bissau como ponto de referência, pode dizer.se que a estação das chuvas é opressiva e de céu encoberto; a estação seca é húmida, com céu parcialmente encoberto; ao longo do ano, o clima é sempre quente e húmido: em geral a temperatura varia de 19 °C a 35 °C e raramente é inferior a 17 °C ou superior a 38 °C. Dezembro e janeiro são meses mais frescos á noite.
Dormir nu à noite era normal, podendo todavia originar algumas situações pícaras como a que aqui é descrita (**)... No quartel de Bambadinca, que até tinha razoáveis instalações para oficiais sargentos, os oficiais milicianos dormiam em quartos com três camas. Quartos individuais eram um privilégio de capitães e oficiais superiores.
O Fernando Calado (ex-alf mil trms, CCS/BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70) partilhava o quarto com o Ismael Augusto (ex-alf mil manutenção), já que o João Rocha, ex-alf mil rec inf [João Alfredo Teixeira da Rocha (Ilha de Moçambique, 1944 - Porto, 2018)] cedo deixou a companhia e o batalhão, por motivos disciplinares.
(...) "Encontrámo-nos no BC 5, em Campolide, antes da mobilização de ambos para a Guiné, ele no BCAÇ 2852 e eu no BCAÇ 2851.
"Desde há alguns anos que falávamos telefonicamente, especialmente na época natalícia. Partiu um bom homem, cidadão e amigo.
"Um eterno descanso em paz. Hernani Figueiredo." (...)
Meu amor:
Esta manhã, acordei sobressaltado, e reparei que estavam no quarto 2 bajudas (mulheres jovens da Guiné) que nos traziam a roupa lavada e que riam à gargalhada.
Estava nu, de barriga e outras coisas para cima e transpirado como sempre.
Olhei para o camarada do lado que estava tão aflito como eu, e, à boa maneira europeia, tentei cobrir-me com um lençol que não tinha.
Perguntei então às bajudas porque se riam, tendo elas respondido o seguinte:
Foi uma vergonha e fomos até ameaçados de ser castigados. São horas, dias, semanas, meses, anos a aturar-nos, sempre em tensão e dentro deste espaço ladeado por arame farpado.
Na verdade, penso que as discussões, a batota, os copos, o calor, os ataques, as emboscadas, etc. criaram uma cumplicidade tal, que tudo indica que seremos amigos do peito para toda a vida
Como se isso não bastasse, durante o almoço o médico [alf mil David Payne ] veio comunicar-me que mais de metade dos soldados da companhia estavam infectados com blenorragia (designação apropriada do termo de calão muito conhecido que dá pelo nome de esquentamento e que se reporta a uma infecção nos órgãos genitais).
Segundo ele, a penicilina não está a actuar em virtude do calor excessivo e da elevada taxa de humidade e, portanto, é necessário organizar uma reunião de esclarecimento com todos os soldados disponíveis.
Soube depois que o pedido a mim dirigido resultava, afinal, do facto do meu pelotão ter a maior taxa de elementos infectados.
Durante a tarde algumas pessoas conseguem dormir a folga, coisa que nunca consegui e ainda menos com este calor e esta humidade.
Eu, como todos os dias que não saio do aquartelamento, cumpri algumas tarefas burocráticas que a tropa, mesmo em guerra, não dispensa.
Mais tarde vagueei, uma vez mais, dum lado para o outro sempre com a sensação de estar encurralado, na ânsia de conseguir gastar o tempo que me falta para me livrar disto.
Por vezes ocorrem, no final do dia, momentos de alguma descontracção. Conversamos sobre a nossa vida na Metrópole e damos umas voltinhas de jipe.
Não tenho carta de condução, mas conduzo. Recebi umas lições do meu colega de quarto e desenrasco-me. De qualquer modo ninguém, nesta situação, está interessado em saber se tenho ou não carta de condução.
Já anoiteceu e partir de agora e até pegar no sono, o que acontecerá lá para as tantas da manhã, instala-se o medo e a saudade.
Eu, que sempre gostei da noite, juro-te que aqui odeio a noite. Estamos todos fartos de fumar, de beber e de jogar, mas a verdade é que estas actividades aliviam, de facto, o medo e a saudade.
Hoje é feriado [1º de Dezembro, dia da Restauração da Independência de Portugal, ] e a probabilidade de haver problemas aumenta. A malta está mais concentrada, fala mais baixinho. [No dia 28 de Maio de 1969, Bambadinca tinha sido atacada em força.]
A questão do medo é surpreendente. Há camaradas que parecem não ter medo nenhum. É como se estivessem em casa ou numa esplanada e, mesmo debaixo de fogo, funcionam normalmente.
Depois, talvez a maioria, tem imenso medo, mas mercê de um enorme esforço consegue controlar a situação (julgo que me enquadro neste grupo).
Finalmente há camaradas, alguns deles aparentemente corajosos, que em quase todas as situações, entram em pânico total e que precisam sempre de ajuda. São obviamente os que sofrem mais, quer durante a situação, quer sobretudo pela vergonha que sentem depois.
Tenho saudades de tudo na metrópole: das pessoas, das ruas, dos jornais, da rádio, dos carros e até dos comboios que aqui não existem.
Quanto a ti, meu amor… Acredita, nunca imaginei que a saudade que sinto de ti me provocasse tamanha dor física. Dói-me a cabeça, dói-me as pernas, dói-me o peito… enfim dói-me tudo.
Sei que estou desesperado, mas não resisto a dizer-te que dava anos da minha vida, se é que os vou ter, para estar neste momento contigo.
São 8 horas da noite e a temperatura nesta altura é um pouco mais amena. Se calhar esta noite vou ter de pôr um lençol na cama, não vou transpirar a dormir, e… talvez tenha um sonho manga di bom.
Do teu para sempre
Fernando
Areograma de Fernando Calado > Bambadinca, 1 de Dezembro de 1969
Meu amor:
Esta manhã, acordei sobressaltado, e reparei que estavam no quarto 2 bajudas (mulheres jovens da Guiné) que nos traziam a roupa lavada e que riam à gargalhada.
Estava nu, de barriga e outras coisas para cima e transpirado como sempre.
Olhei para o camarada do lado que estava tão aflito como eu, e, à boa maneira europeia, tentei cobrir-me com um lençol que não tinha.
Perguntei então às bajudas porque se riam, tendo elas respondido o seguinte:
− Afero, sonho manga di bom hoje mesmo.
Para além do embaraço, pensei depois que afinal eu, um homem dito civilizado, tive uma postura naturalmente preconceituosa enquanto que elas, mulheres ditas primárias, tiveram uma postura naturalmente genuína, tendo expressado com rigor o que se tinha passado e rido com gosto a propósito de uma situação bastante caricata.
Passei a manhã a tratar da organização das transmissões de vários grupos operacionais escalados para operações e mais uma vez os comandantes de pelotão disseram-me que os rádios são uma merda e que, por vezes, não funcionam em situações de emergência.
Eu bem sei que me disseram sempre que os rádios são os mesmos da II Guerra Mundial mas, mesmo assim, custa-me anos de vida quando não se consegue fazer o contacto para evacuação de feridos.
Sinto assim, apesar dos meus 24 anos, que tenho uma responsabilidade excessiva e não me resta outra alternativa senão tentar ser o mais eficiente possível.
Antes do almoço, depois do segundo banho do dia, dirigi-me ao bar onde saboreei descontraidamente o meu whisky com água Perrier.
Gosto particularmente deste momento do dia. Diz-se aqui, que na Guiné existem apenas 2 coisas boas: o whisky com água Perrier e o avião para a Metrópole.
Chegou depois o meu colega de quarto [alf mil Ismael Augusto ] e a propósito de qualquer coisa que já não me recordo, ocorreu uma discussão de tal ordem que quase andámos ao murro.
Para além do embaraço, pensei depois que afinal eu, um homem dito civilizado, tive uma postura naturalmente preconceituosa enquanto que elas, mulheres ditas primárias, tiveram uma postura naturalmente genuína, tendo expressado com rigor o que se tinha passado e rido com gosto a propósito de uma situação bastante caricata.
Passei a manhã a tratar da organização das transmissões de vários grupos operacionais escalados para operações e mais uma vez os comandantes de pelotão disseram-me que os rádios são uma merda e que, por vezes, não funcionam em situações de emergência.
Eu bem sei que me disseram sempre que os rádios são os mesmos da II Guerra Mundial mas, mesmo assim, custa-me anos de vida quando não se consegue fazer o contacto para evacuação de feridos.
Sinto assim, apesar dos meus 24 anos, que tenho uma responsabilidade excessiva e não me resta outra alternativa senão tentar ser o mais eficiente possível.
Antes do almoço, depois do segundo banho do dia, dirigi-me ao bar onde saboreei descontraidamente o meu whisky com água Perrier.
Gosto particularmente deste momento do dia. Diz-se aqui, que na Guiné existem apenas 2 coisas boas: o whisky com água Perrier e o avião para a Metrópole.
Chegou depois o meu colega de quarto [alf mil Ismael Augusto ] e a propósito de qualquer coisa que já não me recordo, ocorreu uma discussão de tal ordem que quase andámos ao murro.
Foi uma vergonha e fomos até ameaçados de ser castigados. São horas, dias, semanas, meses, anos a aturar-nos, sempre em tensão e dentro deste espaço ladeado por arame farpado.
Na verdade, penso que as discussões, a batota, os copos, o calor, os ataques, as emboscadas, etc. criaram uma cumplicidade tal, que tudo indica que seremos amigos do peito para toda a vida
Como se isso não bastasse, durante o almoço o médico [alf mil David Payne ] veio comunicar-me que mais de metade dos soldados da companhia estavam infectados com blenorragia (designação apropriada do termo de calão muito conhecido que dá pelo nome de esquentamento e que se reporta a uma infecção nos órgãos genitais).
Segundo ele, a penicilina não está a actuar em virtude do calor excessivo e da elevada taxa de humidade e, portanto, é necessário organizar uma reunião de esclarecimento com todos os soldados disponíveis.
Soube depois que o pedido a mim dirigido resultava, afinal, do facto do meu pelotão ter a maior taxa de elementos infectados.
Durante a tarde algumas pessoas conseguem dormir a folga, coisa que nunca consegui e ainda menos com este calor e esta humidade.
Eu, como todos os dias que não saio do aquartelamento, cumpri algumas tarefas burocráticas que a tropa, mesmo em guerra, não dispensa.
Mais tarde vagueei, uma vez mais, dum lado para o outro sempre com a sensação de estar encurralado, na ânsia de conseguir gastar o tempo que me falta para me livrar disto.
Por vezes ocorrem, no final do dia, momentos de alguma descontracção. Conversamos sobre a nossa vida na Metrópole e damos umas voltinhas de jipe.
Não tenho carta de condução, mas conduzo. Recebi umas lições do meu colega de quarto e desenrasco-me. De qualquer modo ninguém, nesta situação, está interessado em saber se tenho ou não carta de condução.
Já anoiteceu e partir de agora e até pegar no sono, o que acontecerá lá para as tantas da manhã, instala-se o medo e a saudade.
Eu, que sempre gostei da noite, juro-te que aqui odeio a noite. Estamos todos fartos de fumar, de beber e de jogar, mas a verdade é que estas actividades aliviam, de facto, o medo e a saudade.
Hoje é feriado [1º de Dezembro, dia da Restauração da Independência de Portugal, ] e a probabilidade de haver problemas aumenta. A malta está mais concentrada, fala mais baixinho. [No dia 28 de Maio de 1969, Bambadinca tinha sido atacada em força.]
A questão do medo é surpreendente. Há camaradas que parecem não ter medo nenhum. É como se estivessem em casa ou numa esplanada e, mesmo debaixo de fogo, funcionam normalmente.
Depois, talvez a maioria, tem imenso medo, mas mercê de um enorme esforço consegue controlar a situação (julgo que me enquadro neste grupo).
Finalmente há camaradas, alguns deles aparentemente corajosos, que em quase todas as situações, entram em pânico total e que precisam sempre de ajuda. São obviamente os que sofrem mais, quer durante a situação, quer sobretudo pela vergonha que sentem depois.
Tenho saudades de tudo na metrópole: das pessoas, das ruas, dos jornais, da rádio, dos carros e até dos comboios que aqui não existem.
Quanto a ti, meu amor… Acredita, nunca imaginei que a saudade que sinto de ti me provocasse tamanha dor física. Dói-me a cabeça, dói-me as pernas, dói-me o peito… enfim dói-me tudo.
Sei que estou desesperado, mas não resisto a dizer-te que dava anos da minha vida, se é que os vou ter, para estar neste momento contigo.
São 8 horas da noite e a temperatura nesta altura é um pouco mais amena. Se calhar esta noite vou ter de pôr um lençol na cama, não vou transpirar a dormir, e… talvez tenha um sonho manga di bom.
Do teu para sempre
Fernando
[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição no blogue; negritos e parênteses retos; título: LG]
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Notas do editor LG:
(*) Vd. poste de 30 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20191: (De) Caras (112): O aerograma de 1 de dezembro de 1969: "Meu amor, se calhar esta noite vou ter de pôr um lençol na cama, não vou transpirar a dormir, e… talvez tenha um sonho manga di bom"... (Fernando Calado, ex-alf mil trms, CCS/ BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70)
(**) Último poste da série > 18 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26932: Humor de caserna (201): a vida de um "biafrense" na guerra do ar condicionado de Bissau (Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG, 1973/74)